COMO VIVEM OS RICOS DA VENEZUELA

O texto abaixo, de autoria de Sergio Dahbar, foi traduzido e adaptado para a língua portuguesa. O original fora publicado na Revista Don Juan na edição nº 133 (março/abril de 2018) e está disponível em https://www.eltiempo.com/don-juan/historias/ricos-y-lujo-en-venezuela-16881203

COMO VIVEM OS RICOS DA VENEZUELA

O jornalista Sergio Dahbar resolveu investigar um assunto sobre o qual ninguém fala e nem quer falar: como vivem os ricos na Venezuela. O jornalista esteve nos restaurantes onde correm garrafas de Petrus e Möet & Chandon e os chavistas gastam fortunas com candidatas do concurso Miss Venezuela. Visitou os mercados que vendem carne trazida diretamente dos melhores açougues de Manhattan. Esteve nas lojas que fazem entregas a domicilio para os membros do governo que gastam, sem constrangimento algum, 20 mil dólares em roupas e acessórios. Bem vindos ao luxo chavista.

É cada vez maior minha sensação de que os venezuelanos vivem dentro do filme “Casablanca”, de Michael Curtiz. Parece curioso, parece mentira, mas representa a mais crua realidade. Essa é a realidade conhecida por muitos que chegam à Venezuela: encontram duas realidades que, parafraseando Gabriel García Márquez, se parecem com “duas saudades colocadas de frente uma para a outra como dois espelhos”.

Casablanca sempre foi um sonho perigoso: a ideia de que em meio a uma guerra atroz -com seis milhões de judeus exterminados e países arrasados, um restaurante reúna nazistas, expatriados, traidores, líderes da resistência, negociantes do pior tipo e colaboradores fascistas, impecavelmente vestidos como se estivessem em uma festa na Côte d’Azur– não deixa de ser um drama romântico que simplesmente banaliza o horror.

Em tais restaurantes -seja o Sotto Voce, o Aprile, o San Pietro ou o Alto, em Caracas, ou o Gaia, em Margarita- abundam técnicos internacionais de diferentes organismos multinacionais, acompanhados de belas mulheres que mal abrem a boca. Nesses lugares abundam também garrafas de água mineral Petrus e champagne Moët & Chandon, além de outras marcas mais exclusivas. Todos os comensais se divertem muito, como na Casablanca de Humphrey Bogart.

O primeiro que deve ser esclarecido é que esta realidade -que chamaremos própria da Casablanca durante a Segunda Guerra- só pode ser experimentada por uma ínfima parcela da população venezuelana.

Os resultados de pesquisas sobre as condições de vida dos venezuelanos -realizadas pelas universidades UCAB (Universidad Católica Andrés Bello), UCV (Universidad Central de Venezuela) e USB (Universidad Simón Bolívar)-demonstram que 80% das famílias se encontram em situação de insegurança alimentar, termo utilizado para denominar a escassez de alimentos e o difícil acesso a estes.

Estes números causam espanto quando avaliados com atenção: cerca de 8,2 milhões de venezuelanos fazem duas ou menos refeições diárias, e os alimentos consumidos são de baixíssima qualidade. De cada dez venezuelanos, nove não podem pagar por sua alimentação diária.

A maioria não consegue comprar comida ou medicamentos pois o salário mínimo venezuelano -de 4 a 5 dólares- é insuficiente para cobrir suas despesas. A alternativa, na maioria das vezes, é procurar comida no lixo.

Khaled é descendente de uma família árabe. Seus antepassados chegaram à Venezuela tão pobres que não trouxeram malas, somente as lembranças das guerras do Oriente Médio. O avô de Khaled escapou por um triz de ser espancado até a morte por uma tribo que o confundiu com um cristão.

A Venezuela foi o paraíso para o seu avô, mas podemos afirmar que a sorte dessa família aumentou com o governo de Hugo Chávez. Khaled teve a boa fortuna de encontrar o melhor negócio de sua vida e resolveu que precisava trazer alguns primos do Líbano para fazer negócios nos trópicos.

Muitas famílias árabes convidaram seus parentes para visitá-los na Venezuela. Já no país, os recém-chegados compravam empresas que estavam inativas devido à recessão econômica. Estas empresas, então, passaram a solicitar dólares ao governo por meio da Cadivi (Comisión Nacional de Administración de Divisas), com o objetivo de trazer produtos “estratégicos” para o país por meio desses fundos empresariais.

As denúncias investigadas pela Comissão de Controladoria da Assembleia Nacional da Venezuela indicam que a Cadivi destinou irregularmente cerca de 840 bilhões de dólares para o transporte de mercadorias, que em muitos casos não chegaram à Venezuela.

Como isso ocorria? Por meio dessas empresas, eram solicitados fertilizantes para a agricultura. Dólares foram liberados para realizar as compras. No entanto, os contêineres chegavam cheios de areia das praias de Miami, contêineres estes que ninguém chegou a abrir nos portos da Venezuela.

A máquina de produzir dólares no exterior era infinita, porque o dinheiro da venda do petróleo nos anos de bonança econômica também era infinito.

Khaled pagou US$ 2.000 para participar do Partai Margarita Weekend, um festival de música eletrônica de quatro dias em Playa El Agua, Ilha Margarita. A quinta edição do festival contou com a participação de DJ’s da cena eletrônica do mundo inteiro. O uísque Johnnie Walker Blue Label, um dos preferidos do chavismo, esgotou durante o festival. Cada garrafa custava 500 dólares. Khaled, que queria impressionar uma amiga que acabara de conhecer, consumiu com seus amigos cinco garrafas do exclusivo uísque.

Curiosamente, os primos de Khaled já voltaram ao Líbano. Eles cumpriram a missão de enriquecer a família. Trata-se de mais um dos muitos clãs árabes que se tornaram bilionários com negócios corruptos que o governo facilitou em troca de comissões exageradas. As empresas utilizadas foram desativadas e os nomes dos proprietários que cometeram o golpe perfeito não podem ser rastreados.

Nassim vendeu sua empresa em troca de uma caminhonete Toyota Fortuner, um automóvel de luxo que ele jamais poderia comprar. Hoje em dia, Nassim usa o veículo como um táxi de luxo para transportar clientes ao aeroporto.

Os irmãos Mendoza, privilegiados membros da classe média venezuelana, formados nas melhores escolas e amantes da pesca, nunca imaginaram que esta paixão os tornaria empresários de sucesso em um dos momentos mais críticos da Venezuela.

Eles são donos de mercados (já têm quatro só em Caracas) onde ricos e chavistas compram produtos impossíveis para a maioria dos venezuelanos. Cortes de carne premium, embalados a vácuo e oriundos dos mais exclusivos açougues de Manhattan são comprados pelos guarda-costas dos chavistas.

Cada quilo dessa carne premium custa 100 dólares (e há carrinhos de compras que saem com 50 quilos). Os guarda-costas também compram maionese de abacate, massa italiana sem glúten, sal do Mediterrâneo, anchovas ibéricas, presunto Serrano de Parma, caviar italiano, vinagre balsâmico para acompanhar o sorvete de Veneza.

Todas as tentativas de contato do autor da reportagem com os proprietários do supermercado foram frustradas. A verdade é que ninguém quer falar por medo -ou por temor a ser confrontado.

Isaías Mojavi é daqueles que não temem, porque garante que não fez nada de ilegal. Sua loja de roupas e artigos de luxo, localizada em um dos shoppings que antes abrigavam todas as marcas de luxo do mundo, vende camisas Kiton, jaquetas Brioni, isqueiros Dupond e charutos de luxo Dunhill.

Os funcionários das lojas próximas sabem que os chavistas que estão no governo se vestem na loja de Isaías Mojavi. O curioso é que esses clientes nunca são vistos. Isaías organizou seu negócio “a domicilio” que leva os produtos para os membros do Governo em seus escritórios, onde eles tomam suas medidas e contratam a compra de ternos, jaquetas e calças, camisas, sapatos, relógios exclusivos, iPad de ouro, entre outros itens de luxo.

Alguns realizam compras que facilmente somam vinte mil dólares. Em alguns casos, trata-se de presentes cuidadosamente escolhidos para pagar por um negócio corrupto que rendeu muitos dólares. Para agradar o funcionário público e garantir futuras oportunidades de ouro, os mimos escolhidos costumam ser isqueiros de cinco mil dólares ou relógios de quinze mil dólares.

Um dos capangas de Rafael Ramírez -que foi presidente da PDVSA, ministro da Energia de Hugo Chávez, e ainda administrava o dinheiro da família do falecido presidente- frequentava regularmente o restaurante San Pietro em Caracas. Seu nome ficou conhecido por seus costumes extravagantes e luxos excessivos: Diego Salazar, filho de um guerrilheiro.

O regime chavista entregou a Diego Salazar a gestão dos seguros da PDVSA. Um negócio multimilionário, especialmente quando realizado de forma irresponsável. Salazar foi visto muitas vezes com clientes em San Pietro. Os garçons lembram que ele tinha um costume curioso:

“Salazar costumava observar o relógio do cliente. Se fosse muito barato e simples, pedia ao sujeito para ver o relógio mais de perto. Com o objeto em mãos, Salazar o destruía e, em seguida, pedia ao garçom uma garrafa de Louis Roederer Cristal Medallion Orfevres, Edição Limitada Brut Millesime, desenhada por Philippe di Meo, coberta com ouro 24 quilates. Ele abria a garrafa e tirava um relógio Hublot de sua maleta.”

Um conhecido, amigo de seu pai, define-o como “um corrupto que sonhava em ser cantor e tinha uma orquestra de 50 músicos para se divertir como se fosse uma figura do mundo do espetáculo. Ele é um homem que não aceita um ‘não’ como resposta”.

Em outra ocasião, Salazar ficou muito interessado em um edifício ao norte de Caracas. Percorreu todos os andares do edifício e convenceu todos os proprietários a lhe vender seus imóveis. Um dos moradores me contou a conversa que teve com o milionário:

Diego Salazar chegou vestido impecavelmente, com um conjunto de linho, muito perfumado e asseado. Salazar fez uma oferta ao meu amigo, que agradeceu e esclareceu que não tinha interesse em vender. Salazar respondeu que pensasse com calma, que talvez fizessem negócio. Meu amigo negou-se novamente, e Salazar começou a subir a aposta. Atualmente, Salazar é o único dono do edifício de sete apartamentos. Um dos proprietários que vendeu seu apartamento pelo dobro do preço do mercado, afirma que no tal edifício vivem seus guarda-costas, amigas e chefs de cozinha que preparam sua comida.

Em sua época de ouro, Diego Salazar fechava um dos restaurantes mais caros de Las Mercedes, pagando fortunas aos donos para que estes mantivessem o estabelecimento funcionando a partir da meia noite.

Um garçom que trabalhou nesse restaurante narra que Salazar “levava seis garotas que haviam participado do Miss Venezuela, para que servissem seus convidados com os seios à mostra. Corria champanhe até as seis da manhã. Alguns convidados perdiam a linha e a festa terminava parecendo uma orgia”.

Reza o entendimento comum que a ilha de Margarita é uma pérola no Caribe. Mas é uma joia que não escapa das carências do resto do país. Localizada a 40 quilômetros ao norte do continente, possui uma superfície de 1.000 quilômetros e uma das infraestruturas mais desenvolvidas das ilhas do Caribe, com shopping centers, hotéis de luxo e belas praias.

Mas a realidade também no único estado insular do país está dividida entre os muitos cidadãos que vivem na extrema pobreza, com dificuldades para obter alimentos e medicamentos, e alguns poucos que vivem como reis.

Gaia era um restaurante italiano emblemático da ilha, um dos dez mais famosos segundo os guias especializados. Conhecidos membros da oposição e do governo costumavam frequentar o Gaia, em uma sorte de piscadela do destino para com o ambiente de Casablanca. Conseguir uma mesa na alta temporada era muito difícil, e as filas de espera podiam durar horas.

Mas algo aconteceu em dezembro passado. O restaurante fechou as portas e reabriu em um espaço maior no andar térreo do hotel Venetur (antigo Hilton), que Hugo Chávez expropriou de forma arbitrária e violenta.

Um dos antigos clientes do restaurante respondeu com um leve desaire quando o questionei sobre o novo restaurante: “não frequento mais o Gaia. O governo financiou essa expansão para ter um local para almoçar sem ser visto. Os chavistas vão lá agora, se sentem bem. Eles gastam fortunas, protegidos em um ambiente em que ninguém os vê. Eu não vou àquele lugar.”

Tive que atravessar o saguão do hotel Venetur para chegar ao Gaia. Enormes fotos do presidente Chávez, mensagens de amor revolucionário e uma estética que não se parece em nada com o socialismo que conhecemos precedem os corredores que levam a uma entrada luxuosa e de design exclusivo.

Hoje o Gaia é um restaurante luxuoso, muito diferente daquele ambiente simples e discreto que vivia cheio de clientes no centro de Porlamar. Tem hoje um toque de formalidade e pretensão que não combina com a verborragia do chavismo popular. Esse é, portanto, um restaurante que o povo não pode frequentar.

A proprietária Úrsula Pernía trabalha com afinco para que tudo esteja em seu lugar. Lidera um batalhão de funcionários, colaboradores, garçons e eventuais técnicos. Úrsula não perde de vista nenhum detalhe: as plantas, as manchas em um sofá ou uma rachadura no piso de cerâmica.

Ursula não gosta de ser incomodada quando está ocupada, muito menos com perguntas constrangedoras sobre a mudança de seu restaurante ao ventre da revolução em Porlamar, onde poucos podem pagar por seus pratos preparados com ingredientes refinados e inacessíveis à população, tais como botarga, azeite de oliva, sardinha, peperoncino, massa caseira, alcachofra, lagosta e outros frutos do mar.

Ursula tem a esperança de que os clientes que abandonaram o Gaia voltarão, pois considera que as coisas são mais complexas do que simplesmente acusar um empreendimento só porque ele se mudou para um determinado endereço. A proprietária parece esperar que as coisas voltem ao normal, em um país onde quase nada parece ter voltado à normalidade de antes.

Conforme as horas passam, começam a chegar os clientes que fizeram reserva para o almoço: militares acompanhados de empresários, famílias para celebrar um aniversário. As roupas, as bolsas e os sapatos são impressionantes: custam verdadeiras fortunas.

É paradoxal que este hotel –mais bolivariano e “soberano” do que nunca- receba comensais que podem gastar tanto dinheiro de forma ostensiva, em um momento tão crítico da Venezuela.

Num dos centros comerciais mais conhecidos da ilha de Margarita, o Sambil, existe um bar de sucesso chamado Green Martini, cujo estacionamento, à noite, fica lotado de caminhonetes Toyota blindadas brancas.

O Green Martini é uma das casas noturnas mais cobiçadas da ilha pelos cadiveros (nome cunhado pelos negócios irregulares da CADIVI), entre outros que fazem e continuam fazendo negócios com o governo.

Estou acompanhado por um dos históricos empresários da ilha. Observamos com certo espanto o volume de consumo à mesa (champagne, gin, whisky, rum), como se o país vivesse uma festa de fartura sem limites. As bebidas são caras e as contas somam valores em dólares impossíveis de pagar para quem ganha um salário médio ou alto.

“Esta é uma geração sem moral. Eles querem ganhar dinheiro a qualquer custo e não se importam se as pessoas de fora, que inclusive podem ser os seus empregados, vivam uma vida miserável. É possível que amanhã tudo mude e isso continue igual”, diz o empresário que concordou em me acompanhar sem muito entusiasmo, mais como uma cortesia a um visitante.

Quem visita a Venezuela deve se preparar para enfrentar uma realidade inexplicável. Para além da ética e da moral de cada pessoa, tal contraste brutal nunca deixa de surpreender, longe de palavras obsoletas como misericórdia, piedade e compaixão. O sofrimento de muitos e a ostentação de poucos produzem uma realidade complexa, abismal, próxima do mal-estar. A cada dia que passa a mão de Deus parece estar mais longe.

Não tenho dúvidas de que na Venezuela, um dos mais importantes países produtores de petróleo do planeta, seja possível conseguir as melhores bebidas, os pratos mais saborosos, apartamentos de milhões de dólares em áreas exclusivas, carros de alto padrão, roupas luxuosas e extravagantes, os melhores charutos e viagens a paraísos em jatos particulares.

A propaganda que comove o mundo a respeito da emergência sanitária e alimentar, sobre a diáspora que sangra o país, convive com o desperdício avassalador de um grupo privilegiado que tem acesso a dólares baratos e os desperdiça.

O fato de que tantos milhões de dólares entrem com a venda do petróleo, mas não sirvam para alimentar o povo, e que ao mesmo tempo mantenha a população em um estado de terror diário porque as ruas são perigosas, abre espaço para novas reflexões.

A Venezuela deixou de ser um verdadeiro país para se tornar uma caricatura onde alguns cavalheiros que fazem negócios duvidosos vivem como xeiques. Eles podem fazer isso. Eles têm tudo nas mãos. Eles são os frutos terrestres da corrupção.

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